segunda-feira, janeiro 29, 2007

A única vantagem de estar aqui
é poder estar aqui.
Há sempre a hipótese de estar num outro mundo:
no mundo lá de fora
ou no mundo lá de dentro.
Mas estar no mundo lá de fora
ou estar no mundo lá de dentro
é sempre estar num outro tempo
que não é o tempo meu.
Aqui encontro-me no tempo que é o meu:
é este o tempo e o lugar onde sempre me encontro.
E é este o lugar e o tempo onde sempre me desencontro.
Assim me encontro e desencontro
porque me desencontrar é sempre igual a me encontrar.
Dez poderia ser um número como outro qualquer.
É o número que se segue ao nove
e é o número que vem antes do onze
mas poderia ser o número que vem depois do onze
e assim o número que vem antes do nove.
E dez poderia ser ainda outra coisa qualquer.
Como outra coisa qualquer pode ser o sete. Ou o doze.
Isto para falar apenas de números ditos inteiros.
Qualquer coisa.
Tudo é relativo.
Até mesmo a relatividade.
Eu sou aquele que pode afirmar isso.

terça-feira, janeiro 23, 2007

As vozes do Hades por habitar chamam por mim.
Eu sou o que ouve essas vozes
mas nunca lhes respondo.
Eu não quero ser o primeiro habitante
do Hades por habitar.
Prefiro escrever.

quinta-feira, janeiro 18, 2007

(quem é este horizonte impassível que me persegue
nos olhos. de quem é a minha febre
por quem arde o meu tremor. que parca geografia
apronta o seu dardo mineral à parca perda
que nunca foi pedra e que já nunca foi pérola
nem significativo silêncio nem coisa alguma.
árvore do silêncio. aposta múltipla na tábua do perder o que não se pode ganhar.
e o comboio à espera entre cidades:
vamos lá.

(Maio 2002)
serei lágrima do vento. pensamento
obliquamente inquieto. paradigma
e plácido tormento. sal secreto
na cave cavernosa do tempo que já lamento
e já não choro. demonstro a paciência
e a virtude do silêncio.

(Maio 2002)
nunca na minha vida te perdi nem te encontrei
por quem consumo os templos
da pávida memória já não sei.


(Maio 2002)

quarta-feira, janeiro 17, 2007

tu sabes quem eu sou. só eu não sei
quem gasta o meu pavio de palavras
depuradas. assino a sina tua
sem saber qual o jornal
do pensamento diário ou do futuro
fulcro do deturpado fio cio
e do povo que dizes lavra no rio. )

Baltasar Mingo
(Publicado em Debaixo do Bulcão nº19, Julho 2002)

segunda-feira, janeiro 15, 2007

Tenho dentro de mim o peso de sucessivas gerações
de eus. De sucessivas vidas que vivi.
Tenho dentro de mim o peso excessivo
de já ter sido
e a excessiva condenação de continuar a ser
o que já fui
o que sou
e o que ainda virei a ser.

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Sento-me à minha frente
e logo sinto o habitual pavor
de me decifrar.
É este recorrente medo que alimenta
os eus que eu sou.
Sento-me à minha frente:
sinto-me um observador de mim próprio
se acaso isso conseguir sentir.
Sou um observador de mim próprio.
Sou apenas um observador de mim próprio
e isso já não é pouco.

(Almada, Julho 2003)
E há um limiar que não ouso ainda
transpôr. Há por ali um cântico negro
semelhável à noite que existe em mim.
São vozes de um outro universo
(porque não as posso ver: é assim que soam)
sereias de um secreto Hades
ainda por descobrir.
E eu não sou descobridor de coisa alguma

quarta-feira, janeiro 03, 2007

Hábil é a mão sinistra
quando é ambivalente o poema.
Adestro-te, mão: adestro-me
oscilando para o lado abissal
que é em metáfora o do coração
e em mais pura verdade
o da dúvida.
O da treva, porque mal esclarecida.


(Almada, Julho 2003)
E tudo é relativamente perto
e tudo é relativamente longe.
Eu na estrada eu na vida:
perto e longe.


(Setúbal, Fevereiro 2001 )

terça-feira, janeiro 02, 2007

Quem escreve estes poemas sou eu
mas não sou eu.
A mão é minha, de meu pai e minha mãe
é destra de saber amar a tinta e o papel
mas problematicamente há um mas
dentro de mim um ser sinistro. (E quem escreve é o ser sinistro.)
Dentro de mim um ser sinistro se apresenta.
Dentro de mim um ser sinistro que irrompe
- e não conheço.

(Setúbal, Fevereiro 2001)

segunda-feira, janeiro 01, 2007

Lá fora
passa mais um ano
e começa agora neste instante
um novo ciclo solar (dizem)

mas eu
aqui
imune ao tempo

sou aquilo que sou
e sou tudo o que existe

- porque mais não é necessário...